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A vida lá na província há vinte ou trinta anos atrás era de uma tristeza atroz e o cúmulo dessa miséria era atingido nos casamentos. Começava-se de manhã cedo na casa dos pais do noivo ou da noiva, onde se tomava um faustoso pequeno-almoço. Alguns corajosos já saíam para a igreja meio bebidos. Seguia-se o frete da igreja, etapa que os menos crentes tratavam de contornar atrasando-se propositadamente de modo a tornarem irrelevante a sua presença no interior do templo, permanecendo a derreter no seu exterior ao calor tórrido do Verão. Os restantes convidados, onde se incluem todos os tutores de crianças choronas encontram-se lá dentro. À parte do berreiro infantil, o padre nunca se ouve e está quase tudo a dormir. Finda a cerimónia, sai tudo um bocado ensonado cá para fora e aos tropeções por causa da luz. Os morcegos juntam-se aos já devidamente desgargalados convivas que se baldaram e que já ostentam generosas manchas de suor no colarinho. Tudo alinhadinho na escadaria da igreja e tira-se a fotografia de grupo. Esta fotografia tem a curiosa propriedade de ser tão pequena para tanta gente que mal conseugimos perceber onde estamos (caso em que ficamos sempre tapados por alguém que não gostamos), e em casos mais graves não conseguimos perceber quem eram os noivos passados poucos anos. Batida a chapa, vai tudo furioso de fome para o jardim da terra tirar mais fotografias, momento em que se pode apreciar a vocação de esteta do fotógrafo de serviço. Em seguida, e para alívio dos convidados, a meio da tarde lá se avança à cadência de massiva buzinadela para o banquete. Este chinfrim é uma sinfonia comparada com as vigorosas marteladas que os mais voyeurs infligem com os talheres nos copos e garrafas em jeito de repto osculatório. Beijam os noivos, os pais, os padrinhos, o periquito e o perdigueiro. Fazem o amor e não a digestão. Chegado o fim do almoço, o balcão do salão de festas acolhe os apreciadores de café, bagaço e whisky. Estes vão assegurar a manutenção da festa em lume brando à volta de amena cavaqueira enquanto os mais franzinos vão dormir uma sesta até à chegada do copo d'água. Este momento é particularmente esperado por toda a gente, porque é tudo pobre e não há nada mais excitante para gente pobre do que a ideia de comer o que se quiser. Este pendor liberalista revela-se nos tensos segundos que antecedem a partida. Nunca ninguém sabe bem quem é que deve dar início ao copo d'água mas há uma regra de ouro: se ele já está a comer é porque já é para comer. Assim, identificado o primeiro comensal, não é ao presunto que a turba pede contas, nem ao lombo, nem ao rosbife. Não. É ao ananás. Naquela altura, para considerar adequada uma estratégia de aproximação à mesa de frios era absolutamente essencial que o primeiro passo fosse, se não comer, pelo menos reservar umas rodelitas de ananás. Depois logo se tratava do resto. Jjá com a segunda camada alimentícia despachada (sim, porque a outra já dura desde o meio-dia), chega a hora da decadência sempre abrilhantada com agrupamento musical de formação regular: voz, teclas e guitarra. Eventualmente uma jeune fille com umas maracas e uma pandeireita. As mulheres dançam com outras mulheres e há sempre um barrigudo desfraldado de gravata já na testa e que faz um comboio com ao som das playlists da altura: o meu amigo charli braune, mamãe eu quero, todos dizem qui cácháçá é águá, os passarinhos a bailar e eu tenho dois amores. As criancinhas tentam pisar os reflexos da bola de espelhos e as avós já ressonam nas cadeiras dispostas ao longo da parede. Ah. E na altura não havia cá a mariquice das mesas com nomes de flores e temperos. Ia tudo aviado a toque de mesa corrida. Que tempos.
[ ]: Não li tudo. Aliás, até só li a 1ºª e última frases. Mas fiquei cheio de saudades de assistir a casamentos do ppl dos Amiais ou da Glória. Que grandes malucos, a fazerem corridas pra ver quem chegava 1ºs à mesa das bananas! Ou quem enfiava mais leitão nos bolsos!
[ ]: Ananás? Eu quere-me parecer, com vasta experiência nestes casamentos, que a tendência vai mais para a mesa do camarão. Ainda me lembro de uma certa vez, na minha inocência de pré-adolescente com educação em casa, de tentar ir buscar dois camarões para compôr o meu prato na abertura do copo-de-água. Acho que o facto de ter sobrevivido a tal coisa (sem os camarões, mas com vida) devia ter-me tornado mais católica. Mas levantar-me às 8h num Domingo era demasiado esforço.
[ Calvin]: Camarão? Tempos modernos, mais abundantes. Períodos houve em que a presença do bicho à mesa era no mínimo exótica. :O)
[ ]: esqueceste-te do momento alto da noite antes de cortar o bolo, quando os noivos dançam no meio da roda ao som do "boa sorte, boa sorte...". mesmo assim está genial. quase senti saudades.
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