O lanche da mamã

Quando eu andava na primária, o estatuto social da criançada não era determinado pelas roupas, que eram todas relativamente foleiras e parecidas umas com as outras (eram tempos miseráveis), nem pelos telemóveis (na altura, já ter telefone fixo era um luxo). Talvez houvesse algum respeito pelo puto que levasse uma bola de cauchu (uma espécia de borracha manhosa muito popular naquela altura) para escola, mas mais pela excentricadade do objecto do que por outra coisa qualquer.

Naqueles anos, o símbolo de status eram as sandes e era na hora do recreio que se desfilavam as vaidades previamemente preparadas em casa. Na verdade, as características à volta das quais se escalonavam socialmente os petizes era precisamente tudo o que estava além do pão. Este não passava de um triste papo-seco, mero veículo do que realmente importava.

Por um lado, o embrulho. Os tótós, dos quais eu fazia parte, levavam as sandes embrulhadas em guardanapos de papel, o que, sendo muito mais higiénico e prático (só muitos anos mais tarde o entendi), não tinha pinta nenhuma. Os tótós desembrulhavam as suas sandes num processo que se queria expedito e acima de tudo, invisível, enquanto olhavam com inveja para as mãos e bocas engorduradas dos putos que traziam celofane e papel de alumínio (artigos exóticos e pouco acessíveis) a acondicionar o seu lanchinho. Havia particular deslumbre nas miradas lançadas ao papel de alumínio. Devia ser por causa do brilho.

Depois, claro, havia o recheio. Eram tempos de diversidade e a hegemonia do queijo flamengo e do fiambre ainda não se tinha instalado e estas não eram opções mais escolhidas do que toda uma gama de produtos caseiros, dos deliciosos doces de fruta até ricos e copiosamente nauseabundos sortidos de fumeiro que isolavam os seus fruidores dos demais pares por uma barreira invisível mas bastante notória de singular fragrância. Finalmente, havia os desgraçados que não tinham mais do que manteiga a suavizar a secura do farináceo papo. Tipicamente escondiam-se ou lanchavam ao pé das miúdas, junto das quais a popularidade estava igualmente condenada mas enfim, elas sempre se queixavam menos e os cochichos jocosos chegavam imperceptíveis ao alvo (ainda hoje é assim).

Vinte e tal anos volvidos sobre esta pobreza, não me parece que a miudagem lanche melhor. A merenda cabe no bolso e tem o mapa da Europa. Não digo que seja melhor nem pior. Mas é seguramente menos saboroso.